23 dezembro 2011

O PONTO DE TANGÊNCIA

Entrevista com Miguelanxo Pradoem graffiti 6, de 1999

Miguelanxo Prado surgiu com aquela explosão revigorante que o quadrinho adulto conheceu nos anos 80. Autor camaleão, que passa com desenvoltura do sarcasmo distorcido de obras como ‘Mundo Cão’ às atmosferas melancólicas e palpitantes de ‘Tangências’, o artista galego parece ter encontrado, com seu estilo eclético e refinado, um meio para expressar em textos e imagens a necessidade insustentável do ser humano de comunicar.


Como surgiu o teu interesse pelos quadrinhos?
Bom, foi tarde. Quando eu era criança não era o típico menino leitor de quadrinhos, lia mas como qualquer outra criança, não tinha um interesse especial. Foi quando eu já estava na universidade estudando arquitetura que eu os descobri. Até então o que eu tinha feito era pintar e escrever como duas coisas que não tinham relação nenhuma entre elas. Gostava de escrever mas não participava de revistas de criação e de literatura. Pintava, já tinha feito exposições e ao mesmo tempo que estudava arquitetura tinha começado uma carreira como pintor, já tinha uma relação estável com galerias de arte. Então foi na escola de arquitetura que um companheiro chegou um dia com um monte de revistas...
Tem que entender, na Espanha durante a ditadura não chegavam os quadrinhos europeus. Não conhecíamos nada do que se estava fazendo na França, na Bélgica, na Itália... De repente, quando Franco morreu, se fez toda a transição democrática e umas duas revistas começaram a editar todo aquele material. Pode imaginar tudo o que foi produzido durante os quarenta anos de ditadura... o melhor do Moebius, do Bilal, do Toppi, do Pratt... chegar tudo de uma vez! Estas revistas eram jóias. Cada uma delas... Uma coisa incrível! Eu não conhecia.
Então este companheiro chegou um dia e disse: “não entendo, se você gosta de pintar e de escrever como é que não gosta dos quadrinhos?” “Mah, os quadrinhos...” “Não, não, leva as revistas e depois a gente fala”.
Efetivamente levei as revistas e fiquei deslumbrado. Não tanto por tudo aquilo que estava aí, que era já muito importante, mas por descobrir esta possibilidade de misturar as duas linguagens que eu mais gostava, a pintura e a literatura.
Foi muito rápido. Comecei que tinha, penso, uns vinte anos. Então fiz um pouco um plano de trabalho porque não sabia nada desta linguagem. Durante uns anos estive um pouco apreendendo e lendo todas as revistas e os autores que podia e vendo como funcionava. Depois de um ano fiz três histórias, em preto e branco, claro. Uma delas foi publicada num fanzine que fizemos na própria escola com dois amigos. As outras duas coloquei em uma pasta e levei para Barcelona, que é um pouco como São Paulo, aqui. Cheguei lá e o primeiro editor gostou e comprou as histórias. Uma foi publicada e a outra não. Esta foi a única história que fiz na minha vida que não foi publicada. A única que fica inédita e que agora já decidi não publicar mais porque se isto não aconteceu na época deve ser por algum motivo... Seria como uma violação publicá-la agora. Então vou deixar.
Assim foi, bem devagar, uma história, duas... Depois de um ano o editor sugeriu de fazer uma série longa e foi assim que comecei.

Na tua infância alguém em especial te incentivou?
Sim. Bom... é difícil de explicar. Em um certo senso sou autodidata. Não estudei numa escola de belas artes e os estudos de arquitetura não podem ser comparáveis pois são mais técnicos. Peró soi autodidacta de um jeito muito especial, porque meu pai foi um homem que amou sempre muito a arte. Não era comum naquela Espanha em que a classe média, que era a classe da minha família, tinha um acesso à cultura muito limitado. A cultura tinha um nível mui curto. Não era normal ir ver exposições de pintura.
Meu pai tinha uma grande biblioteca com muitos livros de arte. Gostou sempre de pintar, pintava nas tardes de domingo. Eu já desde pequeno tinha um afeto ao cheiro da trementina, ao andar com as pinturas... Tem também uma pequena coisa pessoal: no mesmo andar onde morava a minha família, no apartamento ao lado, vivia uma moça que era enferma de coração e não podia trabalhar. Eu ficava muito com ela que também gostava de desenhar... Passei toda minha infância rodeado de tudo isto e sentindo admiração pela arte. Sábado à tarde ia com o meu pai a visitar todas as galerias que tinha na cidade, a ver exposições, mesmo se não eram muito boas. A Espanha naquele momento era muito fechada e tinha muitas exposições de arte realista, acadêmica, mas assim eu me acostumei a uma relação direta. Falava de arte com meu pai que me perguntava: “gosta do cara? o que acha melhor?..” Esta formação foi muito importante.

O teu desenho varia muito de um álbum para o outro, passa da hachura densa de histórias mais velhas como ‘Stratos’ ao traço nitido e às luzes coloridas de histórias mais recentes. Esta ‘mutação’ de traço é atípica no mercado de quadrinhos...
De fato, o único problema que tive com os editores quando comecei a publicar foi que cada novo álbum tinha uma estética diferente. Os editores não gostam disto, querem um estilo identificável para prender o público. Além disto eu não produzia séries longas com um personagem fixo...
Na verdade antes de ‘Stratos’ já tinha realizado ‘A enciclopédia Delfica’, que ainda não foi publicado no Brasil e que é uma ficção científica mais limpa, realística e com uma estética mais “bonita”. Daí passei ao traço deformado de Stratos, que tem um desenho mais denso e mais preto. Depois fiz ‘Mundo Cão’, que foi já em cores e então troquei de editor, na Espanha, porque chegou uma hora que não tínhamos uma boa relação. Daí, tanto os editores espanhóis como os de fora começaram a aceitar que este era o meu jeito de fazer. Então consegui algo que para mim foi muito importante, conseguir chegar ao público sem um personagem e um estilo concreto e determinado, mas como um homem. Foi conseguindo um público que gostava de ver que o Prado tinha lançado um livro novo. Não importava que fosse diferente do anterior: “ah, tudo bem, é o Prado...” Podia gostar ou não gostar mas aceitava. Isto me permitiu seguir mudando os estilos e cambiando, coisas que eu realmente preciso.

As formas refinadas dos corpos e as cores em trabalhos como ‘Tangências’ lembram um pouco as obras de Klimt e Schiele...
Adoro Schiele! Conhecia o trabalho de Klimt e o que eu gosto daquela vanguarda austríaca era esta idéia mais estética, mais bonita que é o Klimt. Foi depois de ‘Mundo Cão’, em que já deformava as figuras, que descobri Egon Schiele, que dez anos atrás não era muito conhecido na Espanha. Então conheci o trabalho de Schiele que pra mim era o cara que tinha todas as soberbas... e fui buscar todo o material dele. O que tento deixar para cada livro, para cada história que é diferente, é o estilo gráfico que eu considero mais adequado, e achei que neste caso era o que mais se adaptava a ‘Tangências’, uma coletânea de contos que trata do encontro entre dois casais. Gosto muito do Schiele, muito mesmo.

Você foi influênciado também pelo trabalho de algum autor de quadrinhos?
De quadrinho é difícil, pois quando cheguei ao quadrinho já tinha uma formação gráfica muito grande, já tinha pintado muito passando por todos os ‘ismos’ possíveis: do hiperrealismo mais tolo, mais loco, até o abstrato mais radical. As influências que eu tive no quadrinho não foram tanto a nível de desenho, quanto para compreender o que podia fazer com aquela linguagem. Foi muito importante o Moebius, um cara que me parece desenhar com os anjos...
Sempre digo que entre os desenhistas - e uma coisa não tem mais ou menos mérito que a outra - saem os que depois de muita luta, de um trabalho forte, quase titânico de sofrimento com o desenho chegam a fazer coisas incríveis e os caras que não têm que trabalhar, têm quase um dom divino... Isso já se vê quando o cara pega o lápis e como este se move no papel... ele já vê o desenho, não precisa de esboço, está aí, ele pode mover a figura, desenhar tanto um cavalo como uma nave espacial. Este desenhador, porém, enfrenta um perigo muito grande, se ele não se controla pode perder a capacidade de comunicar e ficar somente em coisas bonitas, estéticas.
Eu admiro o Moebius porque vi que tinha esta facilidade, este dom, mas que sabia utilizá-lo, sabia conter, renunciar. Às vezes pode fazer um desenho muito mais bonito, mas ele não quer, o deixa assim, porque é assim que comunica melhor. Gostei muito do Moebius e gostei muito do Pratt, aprendi muito de el e do Sergio Toppi, cujo trabalho é menos convencional como quadrinho, mais ilustração, mas que chega a ser narrativo e a construir uma rara ação, utilizando o quadrinho de um jeito completamente pessoal.
Estas foram todas referências para mim, não pelo que diz respeito ao estilo gráfico mas por aprender como funciona um quadrinho, como se pode usar esta linguagem.
Na literatura também tenho muitas referências. Adoro o que se chamou o “realismo mágico”, especialmente o latino-americano: Borges, Cortazar, Bioy Casares, Garcia Marquez... adoro toda esta literatura. Por outro lado o que se chamou o grupo de Bradsbury: a Virginia Wolf, Marcel Proust, gente do princípio de século que tem uma narração muito demorada, introspectiva que talvez é quase o oposto do realismo mágico mas que eu sempre adorei também, por este contar pausado, devagar, que às vezes dá a sensação de que nada acontece e que é apenas um passo do tempo.

Parece-me que por alguns autores o desenho é um meio para dar forma ao mundo inconsciente. No teu processo de criação as imagens surgem como emoções ou são mais um reflexo do olhar?
É muito dificil, não sei como colocar em palavras. Muitas vezes fico trabalhando, se bobear à noite toda, pintando uma página o outra... aí deixo e vou deitar. Na manhã seguinte vejo o trabalho como uma coisa alheia, como se não fosse minha... é difícil de explicar, eu sei que é minha mas... é como se o mérito não fosse meu. É como se alguém tivesse me dado um presente, como se tivesse chegado uma criança, um tio ou uma mocinha: “isto é para você” e o presente é um desenho...
E o pior é que eu gosto do meu próprio trabalho. Vejo e digo “ah, é legal!”. Isto é terrível, sério! Nem sempre acontece, claro, muitas vezes vejo e não gosto, rompo e refaço, mas realmente a sensação que tenho é que sou quase como um tradutor.

Em entrevista à Graffiti, José Munhoz colocou o desenhista como “um olho que pensa”...
Certamente, eu tenho consciência do que quero contar, é o que penso do mundo, a minha relação com as pessoas... Isto é meu. Quando escrevo sinto que é realmente trabalho. Escrevo, volto a escrever, apago... Mas quando começo a desenhar e a pintar não, é uma coisa muito mais intuitiva e chega um momento em que é como se uma porta se abrisse e já não penso, as coisas fluem seguidas. Suponho que seja assim, mas descofio também das interpretações muito mágicas, tenho medo de perder-me num mundo que não controlo. No fundo temos toda uma série de formas aprendidas, o que vemos, que escutamos e que sentimos. Então é um pouco como quando falamos: se alguém deixa de utilizar uma língua durante muito tempo perde a capacidade de falá-la rapidamente. Tem uma idéia, sabe o que quer dizer, mas anda buscando porque não acha a palavra justa... No entanto depois que chego a expressar dois conceitos parece mais fácil e tudo volta a se ligar. Acho que é algo assim quando trabalho, porém eu não tenho consciência de como tudo isso funciona.
Também não gosto de saber como faço, penso que quando uma pessoa começa a conhecer as mecânicas de como realiza as coisas corre o perigo de arrematá-las.

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